17 de abril de 2013

O Evangelho Segundo Shepard (versão sem spoilers)

AVISO: Esta é a versão sem spoilers da mesma postagem publicada na versão normal do blog. Se você já completou Mass Effect 3, recomendo ler o texto original.

Mass Effect 3


Eu sou o tempo eterno, o destruidor dos mundos; eu destruo qualquer nação; de todos os guerreiros que aqui contemplas, não sobreviverá um só.
Bhagavad Gita, Canto 11 versículo 32

Desde que meu filho nasceu, uma série de mudanças se processou dentro de minha cabeça. Não há nada como a responsabilidade paterna para amadurecer um ser humano dez anos em poucos meses. Uma destas alterações foi a percepção da Morte. Não seria exagerado afirmar que até determinado ponto de nossas vidas nos julgamos imortais, com o futuro infinito à nossa frente. Este destemor, esta ousadia faz parte do desenvolvimento e acredito que seja um dos motores de nossa busca por conhecimento e experiências durante a juventude, uma certeza da infalibilidade. Até o dia em que tudo muda e você percebe que irá morrer. Em um amanhã ainda distante, mas inexoravelmente. A racionalidade da questão é inequívoca: tudo que você é, tudo que você pensa, irá cessar em algum momento.

O que nos leva a Mass Effect 3, de uma forma única, pessoal, mas que espero que não seja intransferível. Por que acredito que a saga de Shepard diz mais sobre vida, morte, renovação, segundas chances, legado, alma, guerra, paz, tolerância, diversidade e coragem do que boa parte das religiões modernas. Infelizmente, há uma citação a Lost. Se você pulou o aviso ali em cima, esta é a versão sem spoilers da mesma postagem publicada na versão normal do blog. Se você já completou Mass Effect 3, recomendo ler o texto original.

Samsara


Costuma-se dizer que a Bioware mirou em um público mais amplo ao deixar de lado diversos elementos de RPG da franquia no último jogo e se focar em combates frenéticos e violentos. Um dos únicos personagens realmente novos a ser integrado ao grupo de Shepard é um truculento fuzileiro de roupa colada no corpo e mentalidade hardcore. Não há mais mini-jogos de hacking, a administração de armas e atributos está mais simplificada ainda, os confrontos mais constantes e dinâmicos, com novas táticas introduzidas no campo de batalha. Trocas de tiros entre naves espaciais colossais são freqüentes.

Esqueçamos tudo isso. Isso é o chamariz, uma exigência de mercado para uma plateia interessada em headshots e multiplayer. Por baixo do verniz, há simbologia o suficiente para encher um livro e uma profundidade que o conecta mais com a série clássica de Star Trek do que com seu hiperbólico remake.
Por que se você prestar atenção no enredo e em suas nuances, não há como negar que os roteiristas estão preocupados com questões mais relevantes do que o calibre da sua shotgun.

Mass Effect 3


Há uma ameaça irrevogável pairando no horizonte, uma ameaça a qual nenhuma civilização sobreviveu até hoje, em toda a história do universo. Não importa o seu nível de tecnologia, sua sofisticação cultural, suas realizações ou planos. Os Reapers estão aqui. A metáfora é escancarada: o inimigo tem seu nome tirado do termo inglês Grim Reaper, a Morte encapuçada de foice na mão. Reaper é literalmente o Ceifador. Até o presente momento, insuperável. Mas, mesmo eles, estão presos a um método, a uma função cósmica: da destruição provocada, renasce a vida inteligente. Espécies são aniquiladas, outras ascendem. Um legado de conhecimento é passado para frente: um conjunto de ideias e tecnologias que pode (ou não) vencer os Reapers em um futuro hipotético.

E os Reapers estão cientes de seu papel. Por baixo de todo o horror perpetrado, há uma lógica. Um deles declara a Shepard que o Ciclo é eterno. Vida e morte permanentemente atadas em um universo mecânico além do Bem e do Mal.

Porém, mesmo ciente da inevitabilidade, Shepard não se entrega. Ele luta para provar que é possível romper o ciclo. Não por acaso, a Bioware criou um protagonista cujo nome é cognato de "shepherd", pastor em inglês, um termo com fortes implicações religiosas no Cristianismo. Não por acaso, é um personagem que retorna da morte triunfante com a missão de salvar os outros seres vivos. Seu caráter messiânico é explícito, embora ele não professe qualquer religião. Suas crenças são questionadas uma única vez no primeiro jogo, para nunca mais serem mencionadas. Não por acaso, sua última missão envolve entrar em um feixe de luz que liga a Terra com o Céu.

Mártires dos Últimos Dias


Acompanhando o salvador, a Bioware colocou um vasto séquito de discípulos. Se em Mass Effect 2 nós conhecemos seus problemas pessoais, seu passado conturbado e seu ímpeto quase suicida de abraçar uma missão perigosa além do Omega Relay, em Mass Effect 3 conhecemos sua redenção.

Diante da inevitabilidade da Morte, o que nos resta? Viver da melhor maneira que nos é cabido. Tendo ido até o inferno e retornado, resta aos companheiros de Shepard a oportunidade gentil de uma segunda chance. Nenhum erro do passado é brutal demais que não possa ser consertado enquanto ainda há tempo.

Assim, temos personagens queridos indo além dos traumas e horrores expostos anteriormente e os vemos corrigindo seus caminhos, mesmo que isto lhes abrevie a vida, os vemos se entregando de corpo e alma para que outros não sofram o que sofreram ou aquilo que eles mesmos produziram. Em pelo menos um caso, com um sorriso no rosto até.

O resultado pode variar para cada um, de acordo com suas escolhas, naturalmente. Por que muitas das decisões a Bioware colocou na mão do jogador. Mas a essência da lenda que se deseja contar é a mesma: faça o seu melhor, a vida é curta.

Mass Effect 3


A última vez em que me importei tanto com o destino destes seres virtuais foi em Baldur's Gate 2, da mesma Bioware. Mas, agora, o resultado é muito mais intenso. É visível a evolução do que era pouco mais do que postes falantes com posições fixas na nave para indivíduos que interagem entre si e se movimentam no terceiro jogo. Não vi ainda algo parecido em outro jogo. Não há dinheiro que pague tantos detalhes deliciosos, alguns cômicos, outros singelos, vários tristes. O legado de cada um destes personagens permanece com quem joga e no memorial da Normandy.

Tolerância 


Mass Effect 3 a princípio pode parecer um jogo de guerra. O conflito está presente em toda parte: nos noticiários, nas fotos de desaparecidos coladas nas paredes, nos pequenos dramas que se descortinam na Citadel (e para os quais o Pastor sempre tem uma palavra de conforto ou sugestão), nas marcas de destruição. Os cenários pulsam no ritmo do conflito e até a música incessante de Purgatory (outro termo religioso) tem sua explicação no contexto.

Porém, há uma lição para as nações no terceiro capítulo da franquia. A recomendação da "segunda chance" não é válida apenas para indivíduos. Ela vale para todos, em todos os níveis. Se torna claro que tiros mortíferos, alta tecnologia e bombardeios cirúrgicos não são o melhor método para se obter resultados. A única forma do protagonista conquistar a vitória sobre os Reapers é costurando a paz entre os povos. Inverte-se o atávico Latim e temos si vis bellum, para pacem. Neste viés, apesar de sequência cinematográficas e tiroteios de ação, Mass Effect vai na direção contrária de tantos call of duties e gears of war.

Mass Effect 3
Não se iluda pela aparente truculência da publicidade


Diplomacia, confiança e pulso firme são capazes de colocar tantas raças no mesmo barco. O inimigo é universal e inexorável, não há sentido em alimentar velhas rivalidades. É preciso aceitar a diferença. É preciso tolerância.

Se intencionalmente ou não, o discurso da tolerância está presente no contexto da obra da Bioware com mais força do que na maioria dos filmes e livros modernos. Imbuído do zeitgeist, o jogo leva seu jogador a refletir: aqueles com tendências violentas devem ter direito a um novo começo? Qual é o preço da vitória? Até que ponto podemos ir em nossas decisões antes de nos tornarmos aquilo que desejamos combater? Dois povos tão diferentes podem conviver na mesma terra santa? O que é uma alma?

A discussão ultrapassa os limites do universo ficcional de Mass Effect e seu terceiro capítulo é um marco na exposição de personagens homossexuais. Não apenas é possível que jogadores escolham um envolvimento homoafetivo para seu protagonista como NPCs gays estão presentes em várias partes da trama com absoluta naturalidade. Mantendo a mente aberta, é impossível não compreender que Cortez, o nobre piloto de transporte de todas as missões, é um profissional como outro qualquer, exceto por sua opção sexual.

Diante da inevitabilidade, somos todos iguais no universo. Mas diferentes em nossa jornada. E são justamente as tais diferenças que permitem um sopro de esperança na batalha final porque este é o primeiro ciclo em que um emaranhado de raças díspares enfrenta os Reapers ao contrário de uma civilização monotemática. Gerenciando as diferenças e rejeitando o pensamento unificado, advém a evolução.

Ragnarok

 
Comecei o primeiro Mass Effect no final do ano passado cercado de desconfiança. Ainda que muitos afirmassem que a franquia era a melhor série que já haviam experimentado, meu ceticismo e senso crítico insistia em detectar os menores problemas. E eles existem. Sejam DLCs infames ou súbitas guinadas de jogabilidade. Mas o impacto épico de Mass Effect 2 me colocou de prontidão: a Bioware tinha em mãos um material emblemático o suficiente para entrar para a História dos jogos eletrônicos. Mass Effect 3 começa lento, quase decepcionante. Para crescer em escopo, drama e relevância. Muito antes de seu fim, eu já havia decidido: Mass Effect 3 está na Lista de Favoritos. Mais do que isso: é mesmo a melhor série que já experimentei.

Esta postagem foi escrita antes do final da discórdia. Sequer consigo conceber que tal final possa existir. Está tudo muito amarrado, muito claro aqui. Acredito que Shepard encontre a morte de alguma forma, com glória ou sem glória, sozinho ou acompanhado por suas memórias e fantasmas. Não posso me permitir que a conclusão criada pela Bioware tolde de alguma forma meu julgamento de 99% da obra.

O importante é a jornada, algo que o último capítulo de Lost  já tentou fazer com que eu entendesse. Faça o seu melhor, corrija seus erros, aceite o outro com todas as suas diferenças, deixe um legado. E não desista.

Comandante, não importa o que aconteça, foi uma honra servir ao seu lado.